quarta-feira, 16 de junho de 2010

VIAGEM DO RIO DE JANEIRO A MORRO VELHO

RICHARD BURTON FOI UM INGLÊS QUE ANDOU POR ITABIRA DO CAMPO EM MEADOS DO SECULO XIX E ESCREVEU UM LIVRO QUE NARRA ESTA PASSAGEM.
O TRECHO QUE FALA DE ITABIRITO ESTA AI NA INTEGA ESPERO QUE GOSTEM........
Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho 227
Galgamos o lado oposto, da terra mais vermelha, dessa interessante
bacia, guiados por um mamelão que se ergue em sua crista. Outra grande
depressão se apresenta diante e abaixo de nós; a superfície, onde não fora
cortada por esbarrancados ou brechas para a passagem de água, apresentava
um mato baixo e grandes moitas de árvores, uma prova da superioridade do
solo, também melhor protegido que seu vizinho mais ao sul. À direita, fica
uma pequena povoação de mineradores, São Gonçalo do Bação, com uma
igreja branca e ranchos escuros. O nível mais baixo é uma mancha de verdura,
chamada Teixeira, rica de coqueiros e bananeiras, pés de milho e mandioca,
algodão e a planta fibrosa chamada jucá ou baioneta. Tem o aspecto de um
desses lugares tranqüilos, onde o homem pode facilmente chegar à velhice.
A paisagem do norte é um quadro. Estávamos, agora, em presença
das grandes formações de itacolomito e itabirito. O sol poente,
encimado por nuvens muito brancas, alinhadas com nuvens carmesins, lançava
raios de ouro sobre o acastelado penhasco de Itabira do Campo,6 – a
Moça de Pedra entre os prados –, que os homens de Cornualha também
chamavam de pico de Cata Branca. Antes de chegarmos àquele ponto, nós o
havíamos avistado e, então, se parecia com um morro coroado por dois
blocos de alvenaria um tanto fora do prumo. Visto da bacia do rio da Prata,
para norte-noroeste, as rochas do alto do pico pareciam formar um único
bloco. Aqui, a cabeça era um tridente, com as três pontas altas e negras e,
contornando para leste, muitas vezes o veríamos, elevando-se de súbito e
único, como a chaminé de pedra do rio da Prata. Sua forma e seu plano
relembram muitas semi-esquecidas lendas de castelos encantados e montanhas
mágicas, e contam-se histórias interessantes sobre a água que mana de
seu sopé e sobre um poço cavado pela natureza em suas profundezas.
Passamos por um rancho, cujo dono, alto e barbado, com um
chapéu de abas largas caído sobre os olhos, olhou-nos grosseiramente, e não
respondeu às perguntas que lhe fizemos sobre a possibilidade de nos conceder
hospedagem durante a noite. Esse indivíduo, chamado João Militão, tem
fama de ser “valentão”, ou, pior ainda, “capanga”, assassino profissional.
Esses capangas, relíquia dos tempos bárbaros, infelizmente ainda não desapareceram
no interior das províncias brasileiras. Como a honra continua a
ser uma inspiradora de ação, e o duelo é desconhecido, os ofendidos recorrem
aos serviços de facínoras mercenários, e o inimigo é alvejado de trás de
uma árvore, como o proprietário rural irlandês da geração passada. À medida
que a instrução avance e que os costumes sejam adotados pelo intercâmbio
com o mundo, essa calamidade irá, como o Poderoso, tornando-se obsoleta.
Tratamos o Sr. Militão tão grosseiramente, pelo menos, quanto ele nos
tratou e, na manhã seguinte, ele, civilmente, travou conversa conosco, a
respeito dos papagaios que estávamos caçando.
Felizmente, encontramos hospedagem na casa seguinte, que
era de um seleiro, José Teixeira; sem dúvida ele não era rico, mas era simpático
e amável, e sua mulher ajudou-nos a nos arranjarmos da melhor maneira
possível em nossa cama de varas e capim. O terceiro e último morador do
lugar apareceu, logo depois, armado de uma espingarda e muito excitado.
Havíamos encontrado na estrada um cachorrinho branco, andando sem
destino e doente; um de nossos companheiros deu-lhe uma chicotada, e ele
não ganiu nem saiu da estrada, mas ali ficou, teimosamente, sem tentar
morder alguém. Como seu pêlo estava molhado, não suspeitei de hidrofobia,
mas, chegando à casa de Teixeira, fomos informados que ele estava
raivoso há alguns dias e já mordera vários animais.

6. O Dr. Couto, que encontrou cobre cristalizado em seus flancos, traduz o nome para “Moça ou
rapariga de pedra”. St. Hil. dá Yta biira como “pièrre qui brille”. “Yta”, muitas vezes escrita “Ita”,
aparece em palavras compostas brasileiras emprestadas do aborígine e quer dizer rocha, pedra
ou metal, especialmente ferro. “Itabira”, segundo a explicação generalizada, significa “pedra
pontuda”. Castelnau a chama de “Itabiri”, mas a perda de seu MSS obrigou-o a recorrer muito
à memória. O distintivo “do Campo” impede a confusão com “Itabira do Mato Dentro”, um
imponente pico a nordeste. Encontraremos Catas Altas do Campo, em contraposição a Catas
Altas do Mato Dentro. Esses aspectos geográficos serão examinados no Cap. 30.
De Itabira, vem o nome do mineral, “itabirito”, uma rocha de quartzo granular e ferro de
diversas variedades, muitas vezes puro óxido. Eschwege, que criou a palavra, descreve o
minério como xisto ferruginoso, e considera-o como a matriz do diamante. Em Itabira do
Campo começa a cordilheira ferrífera mais ocidental, nesta parte de Minas Gerais, que
chega até Curral d’el-Rei, cruza o rio das Velhas em Sabará e, perto dali, forma a serra da
Piedade. Em suas encostas mais baixas, há abundância de ouro, em geral associado com o
ferro.
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Capítulo XIX
VIAGEM PARA COCHO D’ÁGUA

Clima alegre, fértil e jucundo,
E o chão de árvores muitas povoado:
E no verdor das folhas julguei que era.
Ali sempre continua a primavera.
Eustáquidos, pelo Fr. Manuel de Santa Maria Itaparica

direita ou leste e a cerca de uma milha e meia do pico de Itabira,
há uma bela elevação, onde estão situadas as minas e a aldeia de Cata Branca.1
Alguns pormenores concernentes à sua fortuna anterior serão interessantes; a
mina pertence, agora, à Companhia de Morro Velho, e melhores dias lhe
estão reservados de novo.
As terras, pertencentes originalmente a colonos pobres, brasileiros
e portugueses, passaram para as mãos do Conde de Linhares, que vendeu
a concessão ao falecido anglo-americano, Dr. Cliffe. Este, homem de energia
verdadeiramente transatlântica, e de muita confiança em si mesmo, partiu
com seu direito à “Brazilian Company”, fundou-a em 28 de janeiro de 1833
e, naquele ano, o superintendente, Mr. A. F. Mornay, completou a compra.
Os terrenos da mina, inclusive a fazenda de Santo Antônio,
que foi comprada, e Aredes, que foi arrendada, ficam em boa situação, a
1.450 metros acima do nível do mar,2 a menos de duas milhas da aldeia de
Córrego Seco, a uma distância de quatro a seis milhas, pela estrada real, da
cidade de Itabira e a 35 da capital provincial. O terreno era pobre, mas, nas
proximidades, havia grandes roças ou fazendas, que forneciam mantimentos
a Ouro Preto.
A serra de Cata Branca, onde fica a mina, estende-se de leste
para norte, de oeste para sul. A rocha nela encontrada é, segundo se consta-

Capítulo XIX
VIAGEM PARA COCHO D’ÁGUA

Clima alegre, fértil e jucundo,
E o chão de árvores muitas povoado:
E no verdor das folhas julguei que era.
Ali sempre continua a primavera.
Eustáquidos, pelo Fr. Manuel de Santa Maria Itaparica
230 Richard Burton
tou, quartzo mináceo granular, com ouro visível, como na Califórnia. A
orientação da camada é N. 150 w. e o ângulo de inclinação de 80º a 85º.
Em alguns lugares, a estratificação era quase vertical e, em outros, curvada
sobre a encosta da montanha, sendo geralmente irregular. O veio, estreito
na superfície, alargava-se abaixo de 2 a 6 metros e, na maior profundidade,
atingindo 70 metros. A formação de quartzo era de muitas variedades, transparente,
esfumaçado, branco comum e azul, o que prova a sua riqueza; os
flancos eram de material quartzoso pesado, impróprio, tanto para ser triturado
como para ser arrebentado. A extremidade sudeste era a mais produtiva.
No lado ocidental da jazida, encontravam-se formações ferruginosas de canga
e jacutinga; a última era atingida por perfurações feitas abaixo da serra, que
é, ali, uma massa de peróxido de ferro; as obras, contudo, careciam de ventilação,
e foram abandonadas. O filão, que não se pode considerar “permanentemente
produtivo”, é cheio de cavidades, tubos, canos e ramos, a que
os mineradores brasileiros chamam de “olhos”, cercados de um material
macio, principalmente quando correm verticalmente, e mais ricos em ouro
livre que o usual. Junto destas bolsas, mas não disseminados pelo veio,
encontrava-se pequena quantidade de pirita aurífera, ferro e arsênico.
Finíssima areia amarela, óxido de bismuto, corria pelo meio do filão, produzindo
ouro granular. Os melhores espécimes variavam de 21,75 a 22
quilates, nosso ouro padrão.
O veio de Santo Antônio fica paralelo ao de Cata Branca e a leste
do mesmo. A mina de Aredes, a 8 milhas a sudoeste, ficava além do Pico;
nesse ponto, a serra é coberta de rochedos de quartzo duro, muito numerosos
na base do grande veio. Esses rochedos descansam na argila comum da região,
macia e de várias colorações, e são cortados por linhas de quartzo transparente,
que dá um pouco de ouro muito bom. Essa formação estende-se para o sul e
a oeste do Itabira; foram feitas aberturas nela, e uma, a de Sumidouro, com
êxito. Aredes mostra, também, uma pequena formação de jacutinga, contendo
ouro vermelho, às vezes combinada com paládio e acompanhada de
óxido de manganês. O solo era bom e continha de uma a duas milhas
quadradas de terra arável, que produz todos os cereais da Europa.
O Dr. Mornay, depois Superintendente de Cocais e Vice-Diretor
de Cuiabá, começou com o salário, além de casa e dos requintes da
civilização, de £3.000 por ano, e isso era pago com um capital de 6.000
ações de £10. Em novembro de 1833, sucedeu-o o Comandante Cotesworth,
Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho 231
que depois morreu em Liverpool. Este último era, como todos os superintendentes
do “Serviço”, então apreciados na Inglaterra, um disciplinador
rigoroso, ativo e enérgico, amigo de cavalgar os animais até que estes afrouxassem,
rabugento no que dizia respeito aos seus direitos e “zeloso no cumprimento
de seu dever”, o que acarretou divergências. Encontrando a mina
reduzida à condição de um imenso buraco, o Comandante Cotesworth
teve que tirar (to fork)3 a água que enchia as galerias e nivelá-las, cotá-las
(dial)4 e medi-las de novo. A mineração começou com a antiquada prática
de “britar”, ou melhor “esmagar”, por meio de mós feitas de material
quartzoso duro e resistente; logo depois, entrou em operação a melhor
maquinaria do Império. Em 1835, além de trabalhadores assalariados, a
“Cata Branca” empregava 38 europeus, 76 negros e 34 negras.
Em 1844, a mina desabou. O solo tornara-se lamacento, e a
jacutinga líquida não pôde ser drenada por qualquer força mecânica; o terreno
não estava devidamente protegido pelo madeiramento e os desabamentos
laterais aumentaram até se tornarem enormes. O resultado foi que
treze trabalhadores, entre os quais um inglês, foram mortos; alguns aumentam
o número, que outros afirmam ser exagerado.
O fracasso da “Cata Branca”, fato sob todos os pontos de
vista lamentável, resultou de duas causas. Em primeiro lugar, havia uma
total ausência de economia, e, como Mr. Moshesh observa muito bem,
com particular aplicação a Minas, até mesmo o ouro pode ser comprado
demasiadamente caro. Em segundo lugar, os trabalhos foram malfeitos.
A jacutinga era, então, uma formação desconhecida, mas os mineiros ingleses,
especialmente os da Cornualha, já sabiam tudo e, por conseguinte,
não toleravam que lhes ensinassem coisa alguma. Aqueles que não os julgam
por seu próprio padrão, têm de admitir que eles haviam adquirido,
empiricamente, alguns conhecimentos de mineralogia, nenhum de geologia.
Mas, desde os dias de Howel ou Houel, “rei da pequena Bretanha”,
tinham sido mineiros criados pelo céu, com ares de onisciência. Quem
pode se esquecer do ingênuo discurso do chefe de grupo da Cornualha,
que disse a Robert Stephenson que um habitante do Norte nada podia
conhecer a respeito de mineração? Vi o oferecimento de um “prático da
Cornualha” para fazer por £50.000 o que um “teórico”, quer dizer, um
profissional, um homem que estudou em escolas científicas, não faria por
£100.000.
O Sr. Prático foi levado a sério por um público de práticos –
na Inglaterra ainda se agarra à velha superstição do conhecimento empírico,
que leva muita gente a morder a isca – e o resultado foi que os acionistas
práticos se viram, em breve, habilitando-se em falência.
O fato é que Tre, Pol e Pen são bons homens, mas precisam
tomar a sério o que foi asseverado um pouco a oeste
de sua terra, a saber, que
John P. Robinson
Disse que ele não entendia de tudo na Judéia.
Encontraremos aqueles mesmos males, gastos exagerados e falta
de conhecimento exato, na história de muitas outras aventuras mineiras.
Daí o fato de, nesta terra de ilimitadas riquezas minerais, tantas companhias
terem do que se queixar e tantas minas terem sido, para se usar a expressão
técnica, “golpeadas”.
Depois de uma noite agradavelmente restauradora, levantamonos
com a aurora; mais uma vez, contudo, a madrinha se extraviara, as mulas
a haviam acompanhado e a bela manhã já se tornara bem quente, antes que
pudéssemos montar a cavalo. O caminho não tardou a entrar no vale do rio
da Prata, um riacho em um berço de areia e cascalho, um mundo grande
demais para tão pequeno córrego. Por seis vezes atravessamos as límpidas
águas, que correm para o norte, cortamos duas grandes encostas, por onde
descem as águas vindas de oeste, ultrapassando a linha principal, e paramos
para o almoço debaixo de uma figueira, à margem do córrego do Bação. O
pequeno arraial desse nome. rico em verduras e arvores frutíferas, ficava próximo,
e os mineiros saíram de seus ranchos, para nos ver e conversar conosco.
Retornamos ao vale, agora coberto de areia solta e margeado, como de costume,
por barrancos e montículos de argila vermelha. Outra íngreme subida
para o contraforte à esquerda foi amenizada pela beleza da vegetação e nossos
ouvidos eram embalados pelo murmúrio constante dos inúmeros regatos. As
aves eram mais numerosas que de costume; os papagaios faziam algazarra de
árvore em árvore, um barulhento pica-pau5 gritava no mato e os gaviões
pairavam ao alto, no céu sem nuvens. Avançamos, então, cautelosamente, por
um caminho calçado de pedras, sufocados por nuvens de areia. Um corte de
incipiente arenito e, aqui e ali, muros de pedra, mostraram-nos que estávamos
nos aproximando de uma povoação.
Depois de cerca de quatro horas de cavalgada, avistamos Itabira
do Campo, em uma depressão abaixo de nós. O ribeiro que a divide, correndo
de leste para oeste, é atravessado por uma razoável ponte de pedra, e
suas margens são usadas para coradouro, ficando brancas com as roupas e
negras com as lavadeiras. Ao sul da freguesia ficam as capelas de Nossa Sra
das Mercês e Bom Jesus de Matosinhos; a oeste, fica a do Rosário, enquanto
no centro da localidade estão a matriz de Nossa Sra da Boa Viagem e a igreja
de Sta Teresa. Na realidade, as acomodações das igrejas dariam para alojar
toda a população, embora sem muito conforto; a maior parte dos templos
está em ruínas.
Galgamos outra ladeira escorregadia, a rua da entrada; havia ali
boas casas, mas todas trazendo inscrita na porta a desolação do abandono.
O calor do sol nos induziu a apear em uma venda da Praça de Santa Teresa,
cuja torre, com seu telhado e seus beirais salientes, nos fazia lembrar uma
capela da Suíça. O povo mostrou-se muito amável, e nos ofereceu café,
com a menor demora possível; muitos casos nos foram contados dos velhos
dias, ainda não perdidos na noite dos tempos, em que os habitantes do
lugar arranjavam empregos para os filhos, casavam as filhas com ingleses e
gozavam da excitação dos lucros e perdas. Itabira progrediu com a Mina de
Cata Branca, e decaiu, quando a mina afundou. Os itabirenses continuam,
mal sustentados pelo mercado de Morro Velho e a lembrança dos melhores
tempos mal dá para manter viva a esperança do futuro.
Embora advertidos de que dificilmente conseguiríamos chegar
a Cocho d’Água antes do anoitecer, e bem cientes dos horrores de uma
viagem à noite no Brasil, e de uma estrada desconhecida, partimos à uma
hora da tarde. Outra rua, uma volta para a esquerda, e estávamos de novo
no vale do rio da Prata. Este era, agora, um “rapazelho”, no pior significado
da palavra, turvo, barulhento e raso. Seis milhas de uma estrada surpreendentemente
boa, levaram-nos a Mazagão,6 fundição de ferro do Capitão
Manuel França. Desse lugar ao nosso destino, havia apenas seis milhas, mas
a ponte estava caída, não havia estrada ao longo da alcantilada margem
esquerda e tivemos de fazer uma volta inútil de uma légua, para oeste, noroeste
e norte.
Subidas cobertas de argila e rocha levaram-nos a uma altura
extremamente íngreme; de ambos os lados, o terreno era coberto de “mato
sujo”. A única prova de que não estávamos em uma região de todo deserta
234 Richard Burton
foi a casa de um certo Pereira, um pequeno sítio. Só nos encontramos com
um grupo, provavelmente voltando de alguma festa de família, casamento
ou batizado. As moças iam à frente dos pais, como fazem quando passeiam
nas antiquadas cidades da Itália e do Brasil, com papai e mamãe na retaguarda,
fiscalizando com quatro olhos qualquer olhar dirigido ou recebido. Uma
donzela, muito bonita, de tez bronzeada, cabelos pretos e olhos maliciosos,
estava montada à maneira masculina, uma prática sensata, mas agora obsoleta
aqui, exceto entre os caipiras7 e os escravos. Eu a recomendaria, contudo,
às mulheres que viajam pelo Brasil; aqui, os silhões e as saias são realmente
perigosos, para os membros e para a vida.
Trotando pelo tabuleiro, que achamos muito curto, alcançamos,
depois, de novo, o vale do rio, por outra longa e tediosa descida. No fim
dessa marcha, havia montes alcantilados no rumo do sul e encostas suaves e
cobertas de capim no rumo do norte. A estrada era um ziguezague da pior
espécie; alcançamos outra vez o rio, agora um regato comparável à agitada
juventude de Aquiles.
Impiger iracundus inexorabilis acer.
Uma torrente em torvelinho, não exatamente amarela, mas
escura e carregada, pouco convidativa para a natação ou uma travessia a
vau. Vista de cima das encostas cobertas de capim, a torrente da água era
imponente, margeada de penhascos de 100 metros de altura e sombreada
por árvores gigantescas, cipós pendentes e maravilhosas florestas virgens,
espetáculo que surpreenderiam os admiradores do pequeno Dart, a maravilha
do sul da Inglaterra. A ponte era pouco segura, mas nos agüenta.
Não foi pequena a preocupação que senti. O Sol já lançava seus últimos
raios sobre o cimo das montanhas, três destacadas elevações ao norte,
uma espécie de “Três Irmãs”, iluminadas pelo reflexo. A noite segue-se ao
pôr-do-sol de repente, a estas alturas e nessas baixas latitudes; a encosta era
desesperadamente comprida, os animais estavam exaustos e, em certos
lugares, buracos de sete metros de profundidade abriam-se no meio do
caminho.
Afinal, depois de cansarmos os olhos de tanto procurar, descemos
o ultimo lance da estrada e o dia morrera quando chegamos, com
grande satisfação, a Cocho d’Água. Lá encontramos Mr. L’Pool, que apressara
a marcha, disposto a chegar a lugar seguro antes do anoitecer.
Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho 235
E, aqui, aventuro-me a dar um conselho destinado a formar
um “viajante tranqüilo”. Que todos os pensamentos fiquem subordinados
a si mesmo. Que nenhuma fraqueza ou considerações por sexo ou idade o
impeça de escolher, ou, pelo menos, tentar escolher, o animal mais resistente,
o melhor quarto, a carne mais macia e o último copo de vinho. Quando
estiver viajando, vá na frente dos outros, monopolize a estrada e empurre
para fora dela todos os outros que se aproximarem: provavelmente eles
aprenderão a ceder no futuro. Se um companheiro escolher um animal,
uma sela ou uma rédea, trate de apossar-se dela: provavelmente, ele tem
algum motivo para isso. De manhã, cuide do principal: cubra a cabeça,
proteja o pescoço, encha as botas de algodão. À medida que o sol for subindo,
vá se desembaraçando das proteções, abra o guarda-sol e chupe laranjas, não se
esquecendo dos pequenos expedientes para refazer as forças que sua inteligência
sugerir. Jamais vá para um hotel, se há uma casa particular no raio de uma
légua, e, acima de tudo, tome nota de suas despesas. Finalmente, se convidar
alguém para jantar, “encare-o de frente”, quando ele estiver bebendo, para
evitar que ele gaste outra garrafa. Assim, sua viagem me custará 123 mil-réis,quando seu amigo gastará no mínimo 750 mil-réis por cabeça